Imaginem uma partida de futebol que chegou aos 44 minutos do segundo tempo, com o placar de 6 gols para a equipe de colete azul e 5 gols para o time do colete amarelo. Os jogadores já passaram por mais de 89 minutos de jogo, e todos jogaram muito bem, pois estavam bem treinados para a partida.
Ocorre que um dos jogadores é o dono da bola e autor do primeiro gol. Ele olha para o cronômetro e para o placar, não admitindo ver o seu time perder, toma a seguinte decisão: pega a bola e sem qualquer situação que motive a paralisação da partida, apita em seu próprio jogo informando aos jogadores que a partida deve ser reiniciada e os gols serão todos anulados.
Isso pode parecer afrontoso para uma partida de futebol, imaginem então para a correção de uma garantia constitucional, que é o princípio da segurança jurídica, alicerce do estado democrático de direito.
Nas arquibancadas estavam centenas de milhares de aposentados que assistiam a partida, pois o resultado poderia lhes garantir dignidade. A totalidade dos espectadores torcia pelo reconhecimento do seu direito, pois assim poderiam se alimentar melhor, realizar a compra de medicamentos, dentre outros itens que lhes garantiriam a sobrevivência.
Me recordo que na primeira fileira, estava assistindo o jogo a senhora Célia de 73 anos, que esperava o apito final para comprar um andador para seu neto. Eu nem a conheço pessoalmente, pois isso ela me escreveu em uma live onde debatia o tema com uma colega, mas imagino o quanto este jogo era importante para ela.
E agora eu irei além: este jogador pede não apenas que a partida recomece, mas que o time vencedor perca o seu capitão, e um novo jogador entre em campo para o reinício da partida, onde os times irão jogar com uma nova composição.
No dia 8 de março, às 23:31hs, data limite para a finalização do julgamento do Tema 1102, esse fato ocorreu em sessão de julgamento do Supremo Tribunal Federal, onde 6 votos favoráveis ao desprovimento do Recurso Extraordinário do INSS serão anulados e este julgamento será reiniciado.
É faculdade dos Ministros do Supremo Tribunal o “pedido de destaque”, onde processos que estão sendo julgados em plenário virtual (em razão da pandemia) devam ser enviados para o plenário presencial, recomeçando do zero a votação.
Este pedido é um mecanismo que busca trazer um julgamento mais resolutivo, visando aumentar a troca de argumentos e informações sobre o caso, também trazendo mais atenção dos Ministros para novos fatos apresentados ou a compreensão da matéria…
Este mecanismo é importante para o enriquecimento da controvérsia, ainda mais quando se trata de um direito tão importante, como é a RVT. Porém, este tema tratado teve ampla produção probatória e foi abundantemente enriquecido em seu conteúdo.
Este processo passou pela juntada de memoriais das partes, juntada de sustentações orais de todos os participantes, parecer do Procurador-Geral da República, novos memoriais, despachos em seus gabinetes, parecer técnico do Ministério da Economia juntado pelo INSS com informações sobre o custo da ação para seus cofres, fundamentação do Superior Tribunal de Justiça, estudos sobre decisões do próprio Supremo Tribunal Federal sobre matéria análoga, dentre outros atos.
E dentre estes outros atos eu vou citar um muito relevante: o voto do Ministro Nunes Marques, que realizou o pedido de destaque.
A disponibilização e juntada de seu voto divergente em junho de 2021, muito bem elaborado, comprova a profundidade do debate levado ao Supremo Tribunal Federal. Com o máximo respeito afirmamos que não existe a necessidade de um tema ser levado para o plenário presencial se por meio do virtual o processo se aprofundou.
Neste processo todas as partes, incluindo o recorrente, conseguiram exaurir a produção de provas para a elucidação do tema deixando os Eminentes Ministros convictos para proferirem seus votos acompanhando ou não a relatoria do, agora aposentado, Ministro Marco Aurélio.
Como dito acima, o Tema 1102 teve em sua relatoria o Ministro Marco Aurélio que, após exaustiva produção de provas fundamentou sua decisão pelo desprovimento do Recurso da ré. A votação ser interrompida e recomeçada do zero irá tirar todo o trabalho e estudo realizado pelo Ministro. Mostra-se também como um desprestígio ao processo, bem como a todo estudo do relator e demais Ministros, seu seus votos serem desconsiderados.
Além de toda profundidade sobre o tema levada ao STF, os Ministros juntam um a um seus votos, acompanhando ou divergindo do relator. Todos os Ministro lêem os votos juntados e suas fundamentações, e após votarem, podem realizar a mudança do seu voto se encontrarem em outro voto uma fundamentação que o convença.
E isso não ocorreu. Isso não ocorreu no curso das juntadas de votos, durante os 8 meses em que este processo foi paralisado por um pedido de vistas e nem mesmo posteriormente a juntada do voto de minerva.
Novamente irei além, pois após mais de uma semana da juntada do voto de minerva, onde todos os votos já estavam no processo, nenhum Ministro optou pela modificação de seu voto. Isso mostra que todos estavam convencidos sobre suas razões e fundamentos.
A revisão da vida toda teve seu início no Supremo Tribunal Federal em junho de 2020, iniciando seu julgamento em 04 de junho de 2021 e após 10 votos computados, o processo teve pedido de vistas em 11 de junho de 2021, sendo retomado em 25 de fevereiro de 2022.
Foram 8 meses de novos estudos sobre o tema, onde as partes trouxeram ao processo todo o material probatório de suas alegações sendo noticiado por toda a mídia nacional a importância da ação.
Portanto, o debate foi amplo, e todos os julgadores puderam embasar as fundamentações dos seus votos, incluindo o Ministro Nunes Marques que pediu o destaque. Se mostra válido o pedido de destaque para que o julgamento ocorra em ambiente presencial quando o debate necessita de maiores esclarecimentos ou estudos.
O pedido de destaque não pode ser utilizado de maneira estratégica, possibilitando vetar uma decisão que já se mostra consolidada. Ele tem que respeitar os princípios administrativos, o que inclui moralidade, finalidade e motivação.
Alegar que o destaque é válido como regra, mas, no caso concreto, do modo que foi utilizada, acaba se subvertendo em ato que não condiz com o espírito e a finalidade da norma.
De forma muito clara ficou constatado que ao ter seu voto divergente não sendo seguido pela maioria do colegiado, um pedido de anulação do julgamento foi solicitado.
Em um processo que está em jogo a defesa do preceito fundamental da segurança jurídica constitucional, isso traria um abalo também na segurança jurídica das decisões da Corte. Pois no caso de cenário que possa indicar uma possível derrota, qualquer ministro pode pedir destaque para zerar uma votação desfavorável a si.
A mais alta Corte do país possui o respeito de toda a sociedade com relação a sua seriedade em defesa aos direitos elencados em nossa Constituição Federal, e essa credibilidade se dá também por zelar pelas suas próprias decisões.
A segurança jurídica defendida na revisão da vida toda não é tão somente da prevista em nossa Constituição Federal, é também das próprias decisões de sua Corte.
Aqui cito a lição de J. J. Gomes Canotilho (2000, p. 256), o homem necessita de segurança jurídica para conduzir, planificar e conformar autônoma e responsavelmente
a sua vida. Por isso, desde cedo se consideravam os princípios da segurança jurídica e proteção à confiança como elementos constitutivos do Estado de direito.
Estes dois princípios – segurança jurídica e proteção à confiança – andam estreitamente associados, a ponto de alguns autores considerarem o princípio da proteção da confiança como um subprincípio ou como uma dimensão específica da segurança jurídica.
Em geral, considera-se que a segurança jurídica está conexionada com elementos objetivos da ordem jurídica – garantia de estabilidade jurídica, segurança de orientação e realização do direito – enquanto a proteção da confiança se prende mais com as componentes subjetivas da segurança, designadamente a calculabilidade e previsibilidade dos indivíduos em relação aos efeitos jurídicos dos actos.
No caso em tela isso traz um receio ainda maior: são aposentados com idade avançada que estão aguardando a decisão e retardar o processo trará aos cidadãos um enorme prejuízo, vez que muitos terão falecido na conclusão do julgamento, ou serão atingidos pela decadência, que já fulminou todos os benefícios anteriores a março de 2012.
Estes aposentados estavam prestes a obter a tutela jurisdicional que lhes garantiriam usufruir do ócio com dignidade, porém foram surpreendidos por este mecanismo previsto na Resolução 642/2019.
O presente artigo é uma preocupação com a capacidade que esse poder tem para se tornar um mecanismo estratégico que proporciona a atuação individual de um ministro contra o colegiado.
O Supremo Tribunal Federal estava prestes a corrigir uma injustiça com o aposentado, aplicando o seu entendimento consolidado e principio lógico de que “jamais uma regra de transição pode ser mais desfavorável que uma regra permanente”.
Caso este não fosse o entendimento do Poder Legislativo a norma de transição não seria criada, apenas a regra permanente.
Após o pedido de destaque foi levantada questão de ordem, que busca impedir a ida do processo para plenário presencial, pois o julgamento teve ampla produção probatória, deixando todos os ministros confortáveis para a apresentação de seus votos.
E também o fato de não existir novo argumento que justifique o destaque, não sendo trazidos novos argumentos, este poderia ter sido feito em outro momento, até mesmo antes do voto do próprio Ministro Kassio Nunes Marques.
Fica clara a preclusão consumativa, pois este pedido de destaque deveria ser realizado antes ou durante o seu voto, e não posteriormente. E vamos além, foi solicitado após a juntada dos 11 votos, tendo conhecimento do resultado final, ferindo a frontalmente a segurança jurídica e credibilidade do poder judiciário.
Aqui podemos também citar a preclusão pro judicato, Parte da doutrina compreende a preclusão pro judicato que trata especificamente com atos realizados pelo juízo no processo.
“Art. 494. Publicada a sentença, o juiz só poderá alterá-la:
I – para corrigir-lhe, de ofício ou a requerimento da parte, inexatidões materiais ou erros de cálculo;
II – por meio de embargos de declaração.” “Art. 505. Nenhum juiz decidirá novamente as questões já decididas relativas à mesma lide, salvo:
I – se, tratando-se de relação jurídica de trato continuado, sobreveio modificação no estado de fato ou de direito, caso em que poderá a parte pedir a revisão do que foi estatuído na sentença;
II – nos demais casos prescritos em lei.”
Como atuo neste processo, como amicus curiae pelo IEPREV, presenciei cada ato do seu desfecho na Suprema Corte, e reafirmo que não existe novo argumento levado aos autos que enseja este pedido de destaque.
Finalizo este breve artigo informando o motivo de escrevê-lo, que é trazer o meu receio da criação de um perigoso precedente, que pode ser aplicado em todas as áreas do direito, não apenas na revisão da vida toda.
Ele não pode ser mecanismo para modificação de decisão colegiada já formada.
O pedido de destaque levanta diversos questionamentos sobre segurança jurídica, devido processo legal, pois o julgador que não concorda com votos contrários a seu posicionamento pode recomeçar todo o julgamento da causa, até mesmo quando o seu voto e de mais 10 Ministros já estão no processo.
E isso nos faz questionar também a contrariedade ao princípio do juiz natural, pois a composição do Tribunal pode ser outra quando este julgamento se reiniciar, como é o caso da RVT onde o Relator se aposentou. Temos a esperança de que o STF mantenha o voto do Ministro Marco Aurélio, para que não ocorra a violação de mais este preceito.